IntroduçãoA ciência, enquanto empreendimento coletivo da humanidade, construiu-se gradativamente sobre pilares epistemológicos, éticos e normativos de modo a assegurar cada vez mais a credibilidade e a consistência de seus achados.
1 O
ethos científico, proposto pelo sociólogo Robert Merton, 1974, refere-se ao conjunto de valores e normas que orientam a conduta científica e garantem sua integridade. Entre esses valores estão o universalismo (o conhecimento científico deve ser avaliado de maneira objetiva, independentemente de quem o produziu); o desinteresse (os cientistas devem colocar o avanço do conhecimento acima de interesses pessoais ou comerciais); o comunalismo (o compartilhamento aberto dos resultados e métodos, garantindo acesso e verificação por toda a comunidade); e o ceticismo organizado (a avaliação crítica constante, o questionamento sistemático das evidências e teorias apresentadas).
1Esses valores devem – ou ao menos deveriam – guiar a prática científica, estabelecendo padrões éticos e metodológicos para a produção e validação do conhecimento. Contudo, apesar de em teoria perseguir tais ideais, o sistema contemporâneo de produção científica enfrenta problemas estruturais que minam a integridade da pesquisa e sua capacidade de produzir conhecimento confiável.
2O caso de retratação de 34 artigos de um pesquisador brasileiro pelo periódico
Science of the Total Environment (STOTEN) em 2024
3 expôs fragilidades preocupantes no sistema de publicação científica, chamando a atenção para lacunas nos processos editoriais e de revisão por pares. Acusações que incluem uso de informações fictícias – como e-mails falsos de pareceristas – colocam em xeque não apenas a credibilidade individual do pesquisador, mas deixam clara uma vulnerabilidade estrutural na ciência contemporânea.
Esta "crise de integridade científica" não é um fenômeno isolado. Nos últimos anos, o número de artigos científicos retratados cresceu significativamente, revelando falhas sistêmicas no escrutínio da produção acadêmica. Em 2023, 10 mil artigos sofreram retratação até a primeira semana de dezembro,
4 sendo que, apenas na temática COVID-19, mais de 450 artigos foram retratados até o final de 2024.
5 Apenas para ter dimensão deste problema, embora os 34 artigos retratados sejam um marco assustador para os pesquisadores brasileiros, o recorde pertence ao anestesiologista Joachim Boldt, o primeiro autor com mais de 200 artigos retratados (cerca de metade de suas 400 publicações).
6Uma revisão por pares insustentávelHistoricamente, a submissão de manuscritos a outros cientistas capazes de avaliar o rigor metodológico, originalidade e relevância consolidou-se como um filtro de qualidade antes da publicação de um artigo. Seria uma forma de colocar em prática o ceticismo organizado, permitindo que uma amostra da comunidade científica avaliasse o trabalho antes mesmo de ele ser divulgado ao público.
7Entretanto, com o tempo, esse processo passou a ser visto como um rito burocrático que confere um "selo de aprovação" imutável que atesta: revisado por partes e publicado na revista "x". Essa busca por um selo de qualidade, porém, contrasta com a complexidade do sistema, o crescimento exponencial do número de periódicos e artigos, a falta de incentivos aos revisores (que atuam voluntariamente) e as pressões crescentes sobre os pesquisadores. Tudo isso expõe fragilidades no modelo, tornando a revisão por pares mais permeável a falhas.
8Os revisores de periódicos possuem uma responsabilidade maior do que muitas vezes lhes é atribuída. A vasta maioria atua voluntariamente, acumulando mais uma função além de suas inúmeras atribuições. Essa sobrecarga se torna insustentável a longo prazo e compromete a qualidade da revisão. Como afirmou Bertrand Russell
9: "
É óbvio que um sistema que exige qualidades excepcionais dos seres humanos só excepcionalmente terá êxito".
Em um cenário de alta pressão, dois ou três revisores sobrecarregados acabam definindo o destino de um artigo, sem que haja uma visão mais ampla da comunidade científica – ou, quando há, é tarde demais. Além disso, brechas sistêmicas agravam a situação, como a prática de sugerir revisores, o que permitiu no recente caso brasileiro o uso de contas de e-mail falsas.
10 A falta de verificação mais rigorosa pelo corpo editorial demonstrou outra grave vulnerabilidade: a ausência de auditorias sistemáticas e mecanismos robustos de autenticação em processos editoriais científicos.
11Produtividade, diluição do rigor e impacto no ecossistema científicoO foco excessivo em métricas quantitativas, como o fator de impacto e o índice H, gera incentivos que se distanciam da integridade científica. Pesquisadores pressionados a "publicar ou perecer" procuram maximizar a quantidade de artigos em detrimento da qualidade, favorecendo a proliferação de revistas predatórias. Essas revistas, em troca de dinheiro, publicam virtualmente qualquer material, ignorando protocolos científicos e éticos e comprometendo a credibilidade da ciência.
12Exemplos extremos, como o caso do entomologista Matan Shelomi, que submeteu um artigo fictício sobre o consumo do Pokémon Zubat desencadeando um surto de COVID-19, expõem a ausência de qualquer tipo de escrutínio em revistas predatórias.
13 Essa foi uma maneira caricatural de escancarar o perigo da desinformação e da falta de controle de qualidade, prejudicando a credibilidade do sistema editorial científico, cujas falhas impactam em revisões sistemáticas, na síntese de evidências, na tomada de decisão clínica, na saúde pública e na confiança social na ciência.
12,13A questão não é apenas metodológica; é cultural. Em um ambiente em que a produtividade é mais valorizada do que a qualidade intrínseca, o próprio revisor (incluindo a revisão por pares em bancas de mestrado e doutorado) se sente pressionado a cumprir prazos e manter boas relações com os pares, resultando na aprovação de trabalhos com qualidade mediana ou falhas metodológicas. Com isso, a revisão por pares não se sustenta como filtro absoluto de qualidade, precisando ser repensada e complementada por mecanismos mais transparentes e democráticos de escrutínio científico.
11Quando a revisão por pares falha, o artigo inadequadamente publicado provoca danos irreparáveis, mesmo após a retratação. O estudo fraudulento de Andrew Wakefield, associando vacinas ao autismo, deixou um rastro pseudocientífico que até hoje alimenta movimentos antivacina e polui o ecossistema científico.
14 O mesmo pode ser dito do recém-retratado estudo "pioneiro" da cloroquina como tratamento para COVID-19, capitaneado por Didier Raoult.
15 Esses exemplos icônicos mostram que os impactos causados por uma notícia falsa – em especial quando esta nasce em um "berço científico" – raramente são revertidos por completo.
As consequências das retratações vão além dos artigos e das informações em si; elas abalam a confiança no sistema científico como um todo ao revelarem publicamente que grandes editoras falham em prevenir práticas antiéticas, erodindo a confiança da sociedade na ciência em tempos de desinformação. Coautores e colaboradores idôneos e sem envolvimento direto nas irregularidades também veem suas reputações afetadas. Casos como o da revista
STOTEN, suspensa do
Science Citation Index Expanded, revelam o preocupante quadro de "produção industrial de artigos" (
paper mills) e a pressão por produtividade acadêmica.
16A falta de valorização da reprodutibilidade é outro problema cultural que agrava este cenário. Uma ciência robusta requer que achados possam ser confirmados por diferentes pesquisadores, em contextos diversos. Ainda assim, estudos de produtibilidade não recebem o devido reconhecimento.
17 Nesse mesmo contexto, críticas bem fundamentadas a artigos já publicados são marginalizadas, como se a avaliação crítica de publicações que já passaram pela revisão por pares fosse um trabalho de menor relevância. Mais grave que isso: pesquisadores que se dedicam a avaliar criticamente a evidência publicada são muitas vezes taxados de "invejosos" ou "desocupados", como se apenas a inovação (muitas das vezes acrítica e sem reprodutibilidade) fosse o motor da ciência.
Essa visão é bastante equivocada. A crítica bem fundamentada é parte integrante do progresso científico, corrigindo erros e reforçando a solidez das evidências. Pesquisadores que apontam inconsistências e fraudes contribuem para a saúde do ecossistema científico, ajudando a detectar problemas e a orientar retratações. Iniciativas como o
PubPeer e o
Retraction Watch mostram a importância de uma comunidade engajada em críticas sistemáticas da evidência publicada.
18 Ademais, a implementação de políticas institucionais e de agências de fomento inspiradas em diretrizes como a Declaração de São Francisco sobre Avaliação de Pesquisa (DORA) pode ajudar a deslocar o foco do volume de publicações para a qualidade intrínseca, a robustez metodológica e o impacto real no conhecimento.
19Considerações finaisO aumento do número de retratações de artigos reflete tanto a proliferação de "
paper mills" quanto a crescente vigilância da comunidade científica. Se a crise de integridade é preocupante, os esforços para identificá-la e corrigi-la demonstram que há fôlego para reformas. Algumas iniciativas podem fortalecer este movimento, como maior transparência no processo editorial, valorização da crítica e da reprodutibilidade, além de revisão pós-publicação que seja capaz de diferenciar estudos corrigíveis de fraudes. Além disso, a educação ética e o combate a práticas antiéticas são fundamentais para reduzir a pressão por publicações a qualquer custo.
Apesar dos desafios, essa crise não invalida a ciência, pois sua força está na capacidade de se corrigir e evoluir. A própria existência de retratações evidencia seus mecanismos de autocorreção, ainda que imperfeitos. A ciência se fortalece ao abraçar a crítica e se ajustar constantemente. O verdadeiro desafio, portanto, é o de reafirmar a Ciência como um processo transparente e rigoroso, essencial para preservar sua credibilidade diante do negacionismo e da desinformação.
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Recebido em 24 de Janeiro de 2025
Versão final apresentada em 20 de Fevereiro de 2025
Aprovado em 21 de Fevereiro de 2025
À Convite do Editor Chefe: Lygia Vanderlei