Publicação Contínua
Qualis Capes Quadriênio 2017-2020 - B1 em medicina I, II e III, saúde coletiva
Versão on-line ISSN: 1806-9804
Versão impressa ISSN: 1519-3829

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Acesso aberto Revisado por pares
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Ética e integridade nas publicações científicas

João Guilherme Alves1; Renato Procianoy2

DOI: 10.1590/1806-9304202500000052 e20250052

A ciência é hoje um dos pilares mais importantes para o progresso social e o desenvolvimento humano. Por isso, parece preocupante o recente aumento significativo de retratações de artigos científicos, especialmente na área de saúde, pois lança uma sombra sobre a credibilidade da ciência, afetando decisões clínicas e políticas públicas, assim como prejudicando a confiança das pessoas nas descobertas científicas. Essas retratações são resultantes, na sua maioria, da má-conduta, ou seja, a violação intencional dos princípios da honestidade e integridade da pesquisa. Basicamente, a má-conduta tem sido representada por plágios, fabricação ou falsificação de dados, como apontado por revisões sistemáticas recentes.1,2 O PubMed traz no recente registro de 28/02/2025, 25.994 retratações, sendo que quase a metade, 11.857, foram publicadas nos últimos cinco anos. Esse aumento significativo da publicação de retratações nos últimos anos também tem sido descrito pela plataforma "Retraction Watch Database",3 que monitora e reporta retratações de artigos científicos em todas as áreas de conhecimento.
O aumento das retratações não é apenas consequência da má conduta de alguns pesquisadores, mas também reflete falhas estruturais no sistema científico. A pressão por produtividade, a competição por financiamento, o interesse econômico exagerado da indústria farmacêutica, a explosão dos periódicos predadores, que são revistas científicas que exploram o modelo de acesso aberto para obter lucro, além do valor excessivo atribuído a métricas, criam um ambiente onde resultados positivos e inéditos são priorizados em detrimento da qualidade e da ética. A prática de má conduta pode parecer uma solução rápida para atingir metas, mas suas consequências são duradouras. Retratações afetam a reputação de autores e instituições, geram danos morais, custos financeiros e atrasam o avanço científico. Mais preocupante ainda, essas retratações têm comprometido a confiança da sociedade na ciência, especialmente em um momento em que movimentos de desinformação já desafiam o papel da ciência como fonte confiável de conhecimento.4
A ciência tem a maior relevância e contribuição social em benefício do homem. E a publicação científica na área da saúde, se reveste ainda da maior importância, pois faz parte da construção do conhecimento novo para a saúde pública e para a tomada de decisões clínicas, além de ter relevantes implicações diretas na vida de todos. A publicação de informações incorretas ou fraudulentas pode levar a tratamentos ineficazes, atrasos no desenvolvimento de terapias e danos irreparáveis à saúde dos pacientes. Por isso, é impreterível que toda divulgação científica seja honesta e íntegra, pois o conhecimento científico nessa área não é apenas uma questão ética, mas uma responsabilidade social que passa tantos pelos autores como também editores, revisores, instituições de fomento à pesquisa e mantenedores dos periódicos.
Os periódicos têm um papel relevante na prevenção e enfrentamento da má conduta. Exigências da aprovação de comitês de ética, do consentimento livre e esclarecido dos participantes, da declaração de potenciais conflitos de interesses financeiros ou pessoais, de registros prévios de protocolos de pesquisa, da atribuição de autoria, da transparência e descrição minuciosada metodologia, da disponibilidade de dados brutos e suplementares, além da utilização de processos rigorosos de revisão por pares, do uso de ferramentas tecnológicas para detectar plágios e manipulações de dados, são medidas fundamentais.5 Além disso, os editores devem estar preparados para agir de forma decisiva quando surgirem suspeitas de má conduta, garantindo investigações imparciais e adotando retratações quando necessário. Os artigos já publicados e nos quais a má conduta for identificada, permanecem indexados na base de dados na condição de retratado, não devendo ser mais citado. A retratação deve documentar a razão, mediante comunicação do autor ou editor ou outro agente autorizado, e publicada no mesmo periódico. Os casos de erros ou falhas, independente da natureza ou da origem, desde que não configurem má conduta, devem ser corrigidos por meio de errata.5
A fraude em publicações científicas pode manifestar-se de diversas formas, sendo as mais comuns a falsificação de dados (papermills), o plágio e autoplágio e a publicação fragmentada de um mesmo conjunto de dados (salamipublication), com o objetivo de aumentar artificialmente o número de artigos publicados.6
As "papermills" constituem uma forma de fraude industrial amplamente disseminada no setor acadêmico. Trata-se de organizações não oficiais, voltadas ao lucro e, potencialmente, ilegais, que produzem e comercializam manuscritos fabricados ou manipulados para simular pesquisas legítimas.7
O plágio envolve o uso das ideias, processos, resultados ou palavras de outra pessoa sem a devida atribuição de crédito. A autoplágio ocorre quando os autores reutilizam seu próprio conteúdo previamente disseminado e o apresentam como novo, sem informar ao leitor sobre sua aparição anterior.8
A "salamipublication", ou publicação segmentada, caracteriza-se pela fragmentação indevida de um estudo, resultando em múltiplas publicações que compartilham hipóteses, metodologia ou resultados semelhantes, sem necessariamente apresentarem sobreposição textual. Esse tipo de prática não pode ser identificado objetivamente por softwares de detecção de similaridade, representando, assim, uma ameaça significativa à ética na publicação científica.9
Os editores enfrentam recursos limitados para identificar desvios de conduta por parte dos autores. A detecção de atividades fraudulentas em manuscritos, como o uso de "papermills", baseia-se na análise de indícios de fraude, como citações suspeitas e construção linguística inadequada. Para a identificação de plágio e autoplágio, estão disponíveis atualmente softwares especializados que possuem a capacidade de detectar tais práticas de forma eficaz. A detecção de publicações salame pode ser difícil devido à falta de software específico.10
Ainda assim, a prevenção da má conduta deve começar antes mesmo da submissão dos artigos. Embora os periódicos sejam a última barreira contra a publicação de artigos fraudulentos, o combate à má conduta precisa começar nas instituições acadêmicas. Universidades e centros de pesquisa devem incluir treinamentos em ética científica nos currículos de pós-graduação e promover uma cultura de integridade que valorize a qualidade acima da quantidade de publicações. Além disso, comitês de ética precisam desempenhar um papel mais ativo, não apenas aprovando protocolos de pesquisa, mas também monitorando o cumprimento das diretrizes éticas durante todo o processo de estudo.11
O combate à má conduta não é apenas uma obrigação ética, mas também a defesa do próprio futuro da ciência que deve ser digna de confiança, ou seja, transparente, rigorosa e, acima de tudo, ética. A proliferação de artigos publicados na internet, sem a devida revisão por pares e aprovação de um Conselho Editorial, tem permitido a disseminação de práticas inadequadas. Este cenário exige que os leitores adotem uma postura crítica e atenta ao consumir tais conteúdos, a fim de evitar a influência de indivíduos cientificamente inescrupulosos.

Referências
1. Phogat R, Manjunath BC, Sabbarwal B, Bhatnagar A, Reena, Anand D. Misconduct in Biomedical Research: A Meta-Analysis and Systematic Review. J Int Soc Prev Community Dent. 2023 Jun; 13 (3): 185-93.
2. Hwang SY, Yon DK, Lee SW, Kim MS, Kim JY, Smith L, et al. Causes for retraction in the biomedical literature: a systematic review of studies of retraction notices. J Koren Med Sci. 2023 Oct; 38 (41): e333.
3. The Retraction Watch Database. [Internet]. [acesso em 2024 Dez 17]. Disponível em: http://retractiondatabase.org/RetractionSearch.aspx
4 Singhal S, Kalra BS. Publication ethics: role and responsibility of authors. Indian J Gstroenterol. 2021 Feb; 40 (1): 65-71.
5. International Committee of Medical Journal Editors (ICMJE). Recommendations for the Conduct, Reporting, Editing, and Publication of Scholarly Work in Medical Journals. [Internet]. [acesso em 2023 May 17]. Disponível em: http://www.icmje.org/icmje-recommendations.pdf
6. Mukerji N. AI, papermills, and challenges for editors. [Editorial]. Br J Neurosurg. 2023; 37 (1): 1-2.
7. Else H, Van Noorden R. The fight against fake-paper factories that churn out sham science. Nature. 2021 Mar; 591 (7851): 516-9.
8. Horbach SPJM, Halffman W. The changing forms and expectations of peer review. Res Integr Peer Rev. 2019; 4: 1-15.
9. Supak Smolcić V. Salamipublication: definitions and examples. Biochem Med (Zagreb). 2013; 23 (3): 237-41.
10. Nato CG, Bilotta F. Fraud in Medical Publications. Anesthesiol Clin. 2024 Dec; 42 (4): 607-16.
11. Chen L, Li Y, Wang J, Li Y, Tan X, Guo X. Knowledge, attitudes and practices about research misconduct among medical residents in southwest China: a cross-sectional study. BMC Med Educ. 2024 Mar; 24 (1): 284.

Contribuição do autor: Os autores realizaram a concepção do artigo e declaram não haver conflito de interesse.

 





Recebido em 18 de Fevereiro de 2025
Versão final apresentada em 25 de Fevereiro de 2025
Aprovado em 28 de Fevereiro de 2025





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