RESUMO
OBJETIVOS: analisar a relação entre práticas parentais, uso de telas e a seletividade alimentar de crianças aos 12 meses de idade.
MÉTODOS: estudo transversal aninhado a um ensaio clínico randomizado. Foram selecionadas, além de variáveis de informações sociodemográficas e o estado nutricional da criança, o grau de seletividade alimentar, práticas parentais (práticas centradas nos pais/alto controle, práticas centradas nos pais/manejo de contingências, práticas centradas na criança), obtidas a partir de questionários validados: Child Eating Behavior Questionnaire e Questionário de Estilos Parentais na Alimentação, e uso de eletrônicos por crianças durante as refeições. Análise de regressão linear bruta e ajustada foi realizada para avaliação da associação entre as práticas parentais e a seletividade alimentar.
RESULTADOS: o uso de práticas centradas nos pais/manejo de contingências foi maior em lactentes do sexo feminino (p=0,034) e em crianças classificadas como eutróficas (p=0,021). As práticas centradas nos pais/alto controle e as práticas centradas na criança apresentaram associação positiva com a seletividade alimentar (p=0,037 e p=0,048, respectivamente).
CONCLUSÕES: a evidência de que as práticas parentais na alimentação estão associadas à seletividade alimentar da criança reforça a importância de iniciativas que visem a adequada orientação dos pais nessa fase da vida.
Palavras-chave:
Seletividade alimentar, Comportamento alimentar, Criança, Relações pais-filho
ABSTRACT
OBJECTIVES: to analyze the relationship between parental practices, screen time, and food selectivity in children at 12 months of age.
METHODS: a cross-sectional study nested within a randomized clinical trial. In addition to sociodemographic information and the child's nutritional status, variables selected included the degree of food selectivity, parental practices (parent-centered practices/high control, parent-centered practices/contingency management, child-centered practices), obtained through validated questionnaires: The Child Eating Behavior Questionnaire and the Parental Feeding Style Questionnaire, as well as the use of electronics by children during meals. Crude and adjusted linear regression analysis were performed to assess the association between parental practices and food selectivity.
RESULTS: the use of parent-centered/contingency management practices were higher among female infants (p=0.034) and children classified as eutrophic (p=0.021). Parent-centered/high control practices and child-centered practices were positively associated with food selectivity (p=0.037 and p=0.048, respectively).
CONCLUSIONS: the evidence that parental feeding practices are associated with a child's food selectivity highlights the importance of initiatives aimed at providing appropriate guidance to parents during this stage of life.
Keywords:
Food fussiness, Feeding behavior, Child, Parent-child relations
IntroduçãoA seletividade alimentar se caracteriza pela recusa de uma grande quantidade de alimentos, familiares ou novos, e por determinadas preferências alimentares, resultando na ingestão de uma baixa variedade de alimentos,
1,2 o que pode levar à monotonia alimentar e a uma ingestão insuficiente de nutrientes.
3 Crianças com essa característica ainda tendem a consumir uma menor quantidade de frutas e vegetais, assim como uma maior quantidade de doces.
2,4 Apesar de comum na infância, esse comportamento, em alguns casos, pode persistir para além dessa fase, levando a consequências no crescimento e desenvolvimento da criança, impactando na saúde do indivíduo a longo prazo.
5,6Diversos fatores parecem estar associados com a seletividade alimentar, tanto intrínsecos quanto extrínsecos, como: genética, maior sensibilidade a cheiros e texturas, personalidade, depressão e ansiedade materna, estilos parentais, práticas parentais e características do ambiente alimentar.
1As práticas parentais na alimentação, ou seja, estratégias utilizadas pelos pais para alcançar certos objetivos para a alimentação dos seus filhos, possuem um papel importante no desenvolvimento das preferências alimentares e no comportamento alimentar das crianças. Práticas alimentares responsivas, centradas na criança, que garantem um momento agradável e estruturado durante as refeições, parecem estar relacionadas com um comportamento alimentar positivo destas crianças. Por outro lado, práticas alimentares não responsivas, centradas nos pais, que não respeitam os sinais de fome e saciedade da criança e que não permitem que ela tenha autonomia para fazer escolhas, parecem estar associadas com comportamentos alimentares negativos e com a seletividade alimentar.
7,8Visto que a seletividade alimentar pode levar a impactos negativos não só no crescimento e desenvolvimento da criança, mas também na saúde do indivíduo, é de suma importância entender os fatores associados a esse comportamento. Apesar de a seletividade vir sendo explorada na literatura científica,
1,2,6,9,10 ainda persiste uma lacuna de conhecimento no que tange ao impacto das práticas parentais no desenvolvimento desse comportamento, especialmente em crianças com menos de dois anos de idade. Logo, a investigação mais aprofundada das práticas parentais nesse estágio inicial da infância pode lançar conhecimento sobre estratégias que possam prevenir e manejar essa situação, promovendo uma relação saudável e positiva com a alimentação desde cedo. Desta forma, o objetivo deste estudo é analisar a relação entre práticas parentais, uso de telas e a seletividade alimentar de crianças aos 12 meses de idade.
MétodosTrata-se de um estudo transversal aninhado a um ensaio clínico randomizado (ECR) intitulado "Métodos de introdução da alimentação complementar em crianças: Um ensaio clínico randomizado". O ECR foi realizado com pares mães-lactentes, recrutados através da internet em 2019 e acompanhados até 2020, que foram submetidos a três diferentes métodos de introdução da alimentação complementar (AC) saudável, baseada em três diferentes MÉTODOS: (A) Tradicional; (B) Introdução de sólidos guiada pelo bebê (BLISS - "
Baby-Led Introduction to Solids"); e (C) Método misto (combinação entre os métodos BLISS e tradicional). As mães participaram da intervenção aos cinco meses e meio de vida do lactente, onde receberam orientações sobre manter o aleitamento materno exclusivo, bem como sobre o método de AC ao qual haviam sido randomizadas. Os questionários subsequentes, poderiam ser respondidos por qualquer membro familiar que participasse da alimentação da criança. Dados do protocolo do ECR foram publicados anteriormente.
11Para este estudo foram selecionadas informações sociodemográficas, o estado nutricional da criança, o grau de seletividade alimentar, práticas parentais (práticas centradas nos pais/alto controle, práticas centradas nos pais/manejo de contingências, práticas centradas na criança) e uso de telas pelas crianças durante as refeições.
As variáveis sociodemográficas foram coletadas através de um questionário
online enviado às mães. O instrumento continha questões sobre a escolaridade materna (sem estudo superior ou com estudo superior), renda familiar total (reais - sendo o salário mínimo na época R$998,00), raça/etnia materna (branca ou não branca – parda, preta, amarela ou indígena), situação conjugal materna (com companheiro ou sem companheiro), sexo do lactente (feminino ou masculino) e número de filhos (multípara ou primípara).
A avaliação antropométrica foi realizada aos 12 meses de idade da criança por profissionais previamente treinados. O peso e a estatura das crianças foram aferidos seguindo técnicas antropométricas padronizadas. O índice antropométrico Índice de Massa Corporal (IMC)-para-idade (IMC/I) foi calculado através do software
Anthro® da Organização Mundial da Saúde (OMS).
12 O diagnóstico do estado nutricional foi feito seguindo as curvas de referência, conforme a norma técnica do Sistema de Vigilância Alimentar e Nutricional (SISVAN),
13 para cada faixa de escore-z do índice IMC para idade (IMC/I): magreza acentuada (< Escore-z -3), magreza (≥ Escore-z -3 ≤ Escore-z -2), eutrofia (≥ Escore-z -2 e ≤ Escore-z +1), risco de sobrepeso (> Escore-z +1 e ≤ Escore-z +2), sobrepeso (> Escore-z +2 e ≤ Escore-z +3) e obesidade (> Escore-z +3). Para realizar as análises, optou-se por excluir a categoria magreza, por apresentar apenas 1 participante, e optou-se também por unir as categorias risco de sobrepeso e sobrepeso. Assim, a amostra foi dividida em crianças com IMC/I adequado e em crianças com IMC/I elevado.
A subescala "Seletividade" da versão adaptada e validada para o português do
Child Eating Behavior Questionnaire (CEBQ) foi utilizada para avaliar o nível de seletividade alimentar das crianças estudadas, visto que essa é uma ferramenta utilizada em estudos que avaliam a seletividade alimentar em crianças.
1,2 O CEBQ foi respondido pelos responsáveis aos 12 meses de idade da criança através de um formulário digital autoaplicável.
O CEBQ foi desenvolvido por Wardle
et al.
14 para avaliar o comportamento alimentar de crianças de dois a sete anos, a partir da percepção subjetiva dos pais ou responsáveis. O questionário é composto por 35 itens, divididos em oito subescalas: Resposta à saciedade, Ingestão lenta, Seletividade, Resposta à comida, Prazer em comer, Desejo de beber, Sobre ingestão emocional e Sub ingestão emocional.
A subescala seletividade é composta por seis itens: "meu filho(a) gosta de experimentar alimentos novos"*, "meu filho(a) gosta de uma grande variedade de alimentos"*, "meu filho(a) é difícil de contentar com as refeições", "meu filho(a) interessa-se por experimentar alimentos que nunca provou antes"*, "meu filho(a) decide que não gosta de um alimento mesmo que nunca o tenha provado" e "perante novos alimentos o meu filho(a) começa por recusá-los". Cada item foi respondido a partir de uma escala
Likert de 5 pontos, que se referem à frequência com que ocorre o comportamento: "nunca", "raramente", "por vezes", "muitas vezes" e "sempre". As questões são pontuadas de 1 - 5, com exceção das questões reversas (assinaladas com "*"), que são pontuadas de 5 - 1. Para análise dos dados, foi feita então uma média das respostas dos 6 itens, sendo valores mais altos de média indicativos de maior seletividade alimentar.
O questionário foi traduzido para o português e validado por Viana e Sinde.
15 Além disso, embora a validação seja para o uso em crianças a partir de 36 meses, o instrumento já foi utilizado em crianças a partir dos 12 meses e o uso em menores de 36 meses foi validado em países de baixa e média renda.
16,17As práticas parentais foram avaliadas através do Questionário de Estilos Parentais na Alimentação (QEPA).
18 O questionário foi respondido pelos responsáveis aos 12 meses de idade da criança através de um formulário digital autoaplicável.
O QEPA é a versão traduzida e adaptada para o português do Brasil do
Caregiver's Feeding Styles Questionnaire (CFSQ). O CFSQ foi desenvolvido por Hughes
et al.19 para investigar as estratégias utilizadas pelos pais durante as refeições de seus filhos. A versão traduzida da ferramenta é composta por 19 itens, que devem ser respondidos a partir de uma escala
Likert de 5 pontos, sendo pontuada da mesma forma que o CEBQ.
Foram analisadas as práticas parentais: práticas centradas nos pais/alto controle, práticas centradas nos pais/manejo de contingências, práticas centradas na criança. Os itens centrados na criança avaliam a promoção da autonomia dela durante a refeição, e incluem práticas como tornar a alimentação mais lúdica, fazer perguntas sobre a comida, falar sobre os benefícios dos alimentos, elogiar e fazer comentários positivos durante as refeições. Já os itens centrados nos pais avaliam as pressões externas utilizadas para controlar a alimentação dos filhos. As práticas centradas nos pais/alto controle são práticas que fazem uso de força física e de pressão para que a criança coma; já as práticas centradas nos pais / manejo de contingências incluem o uso de recompensas - alimentares ou não - e o uso de chantagens.
Para a análise das práticas centradas nos pais/alto controle, foi realizada a média dos itens 1, 16 e 19 do questionário; para a análise das práticas centradas nos pais / manejo de contingências, foi realizada a média dos itens 2, 12, 18 e 14; já para a análise das práticas centradas na criança, foi realizada a média dos itens 3, 4, 6, 9, 15 e 17.
18 Valores mais altos de média foram indicativos de maior uso da respectiva prática.
O uso de telas pelos lactentes durante as refeições foi avaliado através da seguinte pergunta específica idealizada para o estudo: "a criança assiste eletrônicos durante a refeição?", que poderia ser respondida com "sim" ou "não".
O banco de dados foi elaborado por meio do
Programa Statistical Package for the Social Sciences (SPSS), versão 22.0, com dupla digitação e posterior validação.
As variáveis contínuas paramétricas foram descritas através da média e do desvio padrão (± DP), enquanto as não paramétricas foram apresentadas pela mediana e pelo intervalo interquartil [P
25 - P
75]. As variáveis categóricas receberam descrição por meio da frequência absoluta (n) e da frequência relativa (%).
As variáveis foram inicialmente selecionadas por análise bivariada
(p<0,20) e, em seguida, incluídas na regressão linear múltipla. O modelo final foi ajustado, mantendo apenas as variáveis com significância estatística (
p<0,05). A regressão linear foi usada para estimar as diferenças médias e os respectivos intervalos de confiança de 95% (IC95%), visando examinar a relação entre o desfecho (pontuação na escala de seletividade) e a exposição (práticas parentais). Foram realizados modelos de regressão linear múltiplos, brutos e ajustados.
Para comparar as pontuações de seletividade e as pontuações das práticas parentais entre os sexos feminino e masculino e entre as diferentes classificações do IMC/I, utilizou-se o teste
t de
Student. Além disso, a possível associação entre o estado nutricional do lactente e o uso de telas durante as refeições foi avaliada por meio do teste qui-quadrado de
Pearson. Em todas essas análises, adotou-se um nível de significância de 5% (
p<0,05).
O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética do Hospital de Clínicas de Porto Alegre sob o nº 2019-0230 (CAAE: 01537018.5.0000.5327) e registrado no Registro Brasileiro de Ensaios Clínicos (ReBEC), sob a identificação RBR-229 scm.
ResultadosNo total, foram analisados os dados de 139 participantes. As características da amostra foram apresentadas na Tabela 1. A amostra foi composta predominantemente por mães brancas (85,5%), que moravam com o companheiro (82,7%), possuíam ensino superior (71%) e eram primíparas (80,6%), com média de idade de 33 anos e mediana da renda familiar mensal de R$6.000,00 [4.000 – 10.000]. Dos lactentes, 54% (n=75) eram do sexo masculino, 69,5% (n=89) eram eutróficos e 83,8% (n=114) não faziam uso de telas durante as refeições.
Observou-se que a média (±DP) da seletividade alimentar da amostra, de acordo com o CEBQ, foi de 2,88 (±0,34). A pontuação da amostra no que diz respeito às práticas parentais, de acordo com o QEPA, foi de 2,10 (±0,58) para as práticas centradas nos pais/alto controle, de 1,14 (±0,33) para as práticas centradas nos pais/manejo de contingências e de 3,0 8 (±0,69) para as práticas centradas na criança.
As diferenças na seletividade alimentar e nas práticas parentais de acordo com o sexo do lactente e com a classificação do IMC/I estão apresentadas na Tabela 2. De acordo com os dados apresentados, foi possível perceber que a variável que apresentou diferença estatisticamente significativa entre os sexos (
p=0,034) e entre as diferentes classificações do IMC/I (
p=0,021) foi as práticas centradas nos pais/manejo de contingências, cujo uso foi maior em lactentes do sexo feminino e em crianças classificadas como eutróficas.
Já a seletividade, as práticas centradas nos pais/alto controle, as práticas centradas na criança e o uso de eletrônicos pelos lactentes durante as refeições não apresentaram diferença significativa entre os sexos e entre aqueles com maiores ou menores IMC/I (
p>0,05).
Um modelo de regressão linear múltipla foi realizado para avaliar a associação entre a seletividade alimentar e as práticas parentais (Tabela 3). Na análise bruta, as práticas centradas nos pais/alto controle, as práticas centradas na criança e as práticas centradas nos pais/manejo de contingências não apresentaram associações estatisticamente significativas com a seletividade alimentar. Ao ajustar para o sexo do lactente, contudo, a associação entre as práticas centradas nos pais/alto controle e a seletividade e entre as práticas centradas na criança e a seletividade passaram a ser estatisticamente significativas (
p=0,037 e
p=0,048, respectivamente), maior em lactentes do sexo feminino.
Por fim, foi analisada a associação entre o uso de eletrônicos por lactentes durante as refeições e a seletividade alimentar (dados não tabelados). Os lactentes que utilizaram eletrônicos durante as refeições (n=22) apresentaram média de seletividade alimentar de 2,93±0,44, enquanto os que não utilizaram (n=114) tiveram média de seletividade de 2,86±0,32. A diferença entre os grupos não foi estatisticamente significativa (
p=0,076), conforme análise realizada pelo teste
t.
DiscussãoNo presente estudo encontramos associação entre as práticas parentais e a seletividade alimentar de lactentes de 12 meses de idade. Os achados sugerem que o uso de práticas parentais centradas nos pais/alto controle e o uso de práticas centradas na criança estão associados com maior seletividade alimentar desses lactentes. Além disso, o uso de práticas parentais centradas nos pais/manejo de contingências está associado com menor seletividade alimentar, porém de forma não significativa.
Estudos adicionais que investigaram práticas parentais caracterizadas por alto nível de controle, como a ação de pressionar a criança a comer determinados alimentos, também identificaram uma associação positiva entre esse comportamento parental e a manifestação de seletividade alimentar na infância, sugerindo que esta ação pode intensificar ou perpetuar padrões de seletividade, dificultando uma aceitação mais ampla de alimentos.
9,20 Isso provavelmente acontece devido ao impacto negativo da pressão sobre o estado emocional da criança, que passa a associar a alimentação a sentimentos ruins, levando a um menor prazer em comer.
Os resultados indicando que práticas parentais centradas na criança estão associadas a uma maior seletividade alimentar contrastam com os achados da literatura existente. Estudos anteriores demonstraram que refeições mais estruturadas, responsivas, que promovem maior autonomia para a criança e que possuem um clima emocional positivo — características de práticas parentais centradas na criança — estão associadas a comportamentos alimentares mais positivos, maior prazer com a alimentação e menor seletividade.
7,8,10,21 O que pode justificar essa discrepância de resultados é o fato de que existem diferentes formas de avaliar as práticas parentais e o ambiente alimentar, o que dificulta a comparação de resultados de diferentes trabalhos.
Já os achados de que o uso de práticas centradas nos pais/manejo de contingências poderia ser um fator de proteção para a seletividade, por sua vez, corrobora em parte com outros estudos. Isso porque as práticas parentais de manejo de contingências analisadas na presente pesquisa englobam o uso de chantagens e de recompensas, sejam elas alimentares ou não. Em relação ao uso de recompensas alimentares, trabalhos anteriores encontraram associação positiva entre essa prática e a seletividade.
7,20 Isso sugere que as recompensas alimentares induzem a criança a ter ainda mais interesse pelo alimento oferecido como recompensa, normalmente doces e sobremesas, e menos interesse pelo alimento que se busca aumentar a ingestão. Por outro lado, o uso de recompensas não alimentares pode encorajar a criança a provar novos alimentos, favorecendo com que ela passe a gostar de uma quantidade cada vez maior de comidas, visto que o paladar se adapta e se torna mais favorável ao sabor após várias experiências.
20,22 A inclusão de recompensas não alimentares nas análises poderia, então, explicar essa possível associação negativa entre o uso de práticas de manejo de contingência e a seletividade alimentar, mesmo que a associação não tenha sido significativa do ponto de vista estatístico.
Apesar de a seletividade ter sido associada a algumas práticas, isso não quer dizer que a prática em si esteja causando ou prevenindo a seletividade. A relação entre pais e filho durante a alimentação é bidirecional, ou seja, ao mesmo tempo que as práticas estão impactando no comportamento alimentar das crianças, esse comportamento está influenciando as práticas dos pais também.
23Todas as práticas estudadas neste trabalho visam aumentar a ingestão alimentar da criança, seja através da pressão, do uso de recompensas ou da ludicidade na alimentação. Estudos sugerem que pais escolhem suas estratégias alimentares em resposta ao peso da criança.
9,10 Isso pode explicar por que o uso de todas as práticas foi maior entre crianças eutróficas em comparação com aquelas com IMC/I mais elevado, visto que a preocupação em aumentar a ingestão alimentar é maior entre crianças que são mais magras, ressaltando a associação significativa apenas para as práticas centradas nos pais/manejo de contingências.
Também analisamos se houve diferença no uso das práticas dependendo do sexo do lactente, e encontramos uma diferença estatisticamente significativa entre eles no manejo de contingências, com maior uso em lactentes do sexo feminino. Não encontramos dados na literatura que justifiquem esse achado. Porém, a escolha das práticas parentais em resposta ao sexo da criança pode ser explicada pelas expectativas de gênero da sociedade. Entretanto, outras variáveis não analisadas podem estar influenciando os resultados, sendo necessários mais estudos para investigar essa associação.
Em relação à seletividade alimentar, não foram identificadas diferenças significativas no grau de seletividade entre os sexos, resultado que corrobora achados de estudos anteriores.
24,25 Também não foram observadas diferenças significativas no grau de seletividade entre categorias de IMC. Embora alguns estudos tenham associado seletividade alimentar a um IMC mais baixo, atribuída à redução da ingestão alimentar característica desse comportamento,
26 outros sugerem que crianças seletivas frequentemente consomem alimentos ultraprocessados e ricos em açúcar.
2,4,21 Esse padrão alimentar pode contribuir para evitar uma redução significativa no peso dessas crianças, mesmo diante de uma menor ingestão global de alimentos.
Um dado preocupante encontrado na nossa pesquisa foi o elevado uso de eletrônicos pelos lactentes durante as refeições, que foi adotado por mais de 15% da amostra, contrariando as recomendações da OMS e da Sociedade Brasileira de Pediatria.
27,28 Embora não tenha sido observada associação com o IMC/I em nossa amostra, é possível que os efeitos negativos, como irritabilidade, transtornos do sono e obesidade, manifestem-se em idades futuras. Recomenda-se substituir o uso de telas por interações com os cuidadores para promover hábitos mais saudáveis.
Embora não tenha sido encontrada associação estatisticamente significativa entre o uso de telas e a seletividade alimentar, os dados sugerem que crianças que utilizam eletrônicos durante as refeições apresentam maior seletividade, corroborando estudos anteriores.
8,22 Isso pode ser explicado pela menor atenção ao ato de comer, reduzindo o interesse pela alimentação. Além disso, refeições com telas deixam de ser momentos de interação familiar, essenciais para o desenvolvimento de hábitos alimentares saudáveis, e dificultam a observação e imitação de comportamentos alimentares positivos dos adultos.
8,22Os resultados encontrados não podem ser generalizados, devido às elevadas características socioeconômicas da amostra, que não condizem com a população geral do nosso país. Outra limitação a ser destacada é o fato de que o recrutamento e a coleta de dados iniciais foram realizados apenas com as mães, uma vez que elas participaram da intervenção. No entanto, os questionários subsequentes poderiam ser respondidos por qualquer familiar envolvido na alimentação da criança. Salienta-se que tanto as práticas parentais quanto a seletividade foram analisadas pela percepção e relato dos pais, o que pode ser passível de subjetividade e viés de memória. Ainda, a idade das crianças avaliadas também é um limitador do estudo, visto que aos 12 meses de idade o lactente está começando a aprender sobre os alimentos. A seletividade se torna mais prevalente conforme a criança passa a desenvolver maior senso de autonomia e a expressar mais fortemente suas preferências. Mais do que isso, é importante ressaltar que, devido ao delineamento transversal do estudo, não é possível inferir relação de causalidade entre as variáveis estudadas.
A evidência de que as práticas parentais na alimentação estão associadas à seletividade alimentar da criança reforça a importância de iniciativas que visem a adequada orientação dos pais nessa fase da vida. Mesmo que a relação entre as duas variáveis seja bidirecional, o que a literatura mostra é que muitas dessas práticas não são efetivas para alterar o comportamento alimentar infantil e que devemos, portanto, buscar outras estratégias para resolver o problema. Dessa forma, mais pesquisas são necessárias para investigar a bidirecionalidade das variáveis e as melhores formas de alterar o comportamento alimentar infantil de forma positiva.
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https://www.sbp.com.br/fileadmin/user_upload/_22246c-ManOrient_-__MenosTelas__MaisSaude.pdfContribuição dos autores: Peres Loureiro G, Ficagna CR, Moreira PR: análise de dados, revisão de literatura, escrita e revisão do manuscrito. Nunes LM: professor integrante do grupo de pesquisa, análise de dados, revisão do manuscrito. Bernardi JR: coordenador da pesquisa, análise de dados, revisão do manuscrito. Todos os autores aprovaram a versão final do artigo e declaram não haver conflito de interesse.
Recebido em 11 de Abril de 2024
Versão final apresentada em 11 de Dezembro de 2024
Aprovado em 13 de Dezembro de 2024
Editor Associado: Gabriela Buccini